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segunda-feira, 3 de outubro de 2011

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Minhas preces estão se tornando mais deliberadas e mais específicas. Ocorreu-me que não adianta muito enviar preces preguiçosas para o universo. Toda manhã, antes da meditação, eu me ajoelho no templo e converso com Deus durante alguns minutos. No início de minha estada aqui no ashram, descobri que, durante essas conversas divinas, eu muitas vezes estava meio distraída. Cansadas, confusas e entediadas, minhas preces soavam iguais. Lembro-me de me ajoelhar certa manhã, de encostar a testa no chão e de murmurar para meu criador:
- Ah, eu não sei do que preciso... mas você deve ter algumas idéias... então cuide disso, tá?
Do mesmo jeito que tantas vezes falei com a minha cabeleireira.
E, desculpe-me, mas isso é meio fraco. É possível imaginar Deus considerando essa prece com a sobrancelha arqueada, e devolvendo o seguinte recado: “Procure-me de novo quando resolver levar isto a sério.”
É claro que Deus sabe do que eu preciso. A pergunta é – será que eu sei? Atirar-se aos pés de Deus em desespero impotente é uma atitude de grande valor – o céu é testemunha de que eu mesma fiz isso inúmeras vezes – mas, no final das contas, é provável que você ganhe mais com a experiência se houver alguma ação da sua parte. Existe uma piada italiana maravilhosa sobre um homem pobre que vai a igreja todos os dias e reza diante da estátua de um grande santo, dizendo: “Querido santo, por favor, por favor, por favor... conceda-me a graça de ganhar na loteria.” Esse lamento dura meses. Por fim, irritada, a estátua ganha vida, baixa os olhos para o suplicante e diz, com uma repulsa cansada: “Meu filho, por favor, por favor, por favor... compre um bilhete.” 
A prece é um relacionamento; metade do trabalho é meu. Se eu quiser transformar, mas se quer for capaz de articular qual exatamente é meu objetivo, como ela poderá ocorrer? Metade do que se ganha com a prece está no próprio ato de pedir, de oferecer uma intenção claramente articulada e refletida. Se você não tiver isso, todas as suas súplicas e desejos não têm sustento,são desconjuntados, inertes; rodopiam a seus pés em uma bruma fria, mas nunca se erguem. Então, eu agora paro todas as manhãs para buscar dentro de mim mesma a especificidade daquilo que estou realmente pedindo. Ajoelho-me ali no templo com o rosto naquele mármore frio durante o tempo que for necessário para formular uma prece autêntica. Se não me sinto sincera, fico ali no chão até isso acontecer. O que funcionou ontem nem sempre funciona hoje. Caso você deixe sua atenção estagnar, as preces podem se tornar rançosas e transformarem-se em algo tedioso e conhecido. Ao me esforçar para me manter alerta, estou assumindo uma responsabilidade integral pela manutenção da minha própria alma.
Sinto que o destino também é um relacionamento – uma interação entre graça divina e o esforço pessoal direcionado. Sobre metade dele você não tem o menor controle; a outra metade está completamente nas suas mãos, e as suas ações terão conseqüências perceptíveis. O homem não é nem uma marionete dos deuses, nem tampouco é senhor do seu próprio destino; ele é um pouco de ambos. Galopamos pela vida como artistas de circo, equilibrados em dois cavalos que correm lado a lado a toda velocidade – com um pé sobre o cavalo chamado “destino”, e o outro sobre o cavalo chamado “livre-arbítrio”. E a pergunta que você precisa fazer todos os dias é: qual dos cavalos é qual? Com qual cavalo devo parar de me preocupar, porque ele não está sob meu controle, e qual deles preciso guiar com esforço concentrado?
Há tanta coisa no meu destino que não posso controlar, mas outras coisas estão, sim, sob a minha jurisdição. Existem determinados bilhetes de loteria que posso comprar, aumentando, assim, minhas chances de encontrar satisfação. Posso decidir como gasto meu tempo, com quem interajo, com quem compartilho meu corpo, minha vida, meu dinheiro e minha energia. Posso decidir o que como, o que leio e o que estudo. Posso escolher como vou encarar as circunstâncias desafortunadas da minha vida – se as verei como maldições ou como oportunidades (e, quando não tiver forças para adotar o ponto de vista mais otimista, porque estou sentindo pena demais de mim mesma, posso decidir continuar tentando mudar minha atitude). Posso escolher minhas palavras e o tom de voz com que falo com os outros. E, acima de tudo posso escolher meus pensamentos.
Esse último conceito é uma idéia radicalmente nova para mim. Richard do Texas chamou minha atenção a seu respeito recentemente, quando eu estava reclamando da minha incapacidade de me livrar dos pensamentos obsessivos. Ele disse:
- Sacolão, você precisa aprender a escolher os seus pensamentos do mesmo jeito que escolhe as roupas que vai usar a cada dia. Isso é uma capacidade que você pode aprimorar. Se você quiser tanto assim controlar as coisas da sua vida, trabalhe com a mente. Ela é a única que você deveria estar tentando controlar. Largue todo o resto, menos isso. Porque, se você não conseguir dominar seu pensamento, vai ter muitos problemas para sempre.   


À primeira vista, isso parece uma tarefa quase impossível. Controlar seus pensamentos? Em vez de o contrário? Mas imaginem: e se fosse possível? Não se trata de repressão nem de negação. A repressão e a negação inventam jogos complicados para fingir que os pensamentos e sentimentos negativos não estão acontecendo. Mas Richard está falando de reconhecer a existência dos pensamentos negativos, entender de onde vieram e por que aparecem, e então – com grande capacidade de perdoar e com grande coragem – mandá-los embora. Essa é uma prática que se encaixa feito uma luva em qualquer trabalho psicológico que você possa fazer durante uma terapia. Você pode usar o consultório do analista para entender primeiro por que tem esses pensamentos destrutivos; e pode usar exercícios espirituais para superá-los. Deixá-los ir embora é um sacrifício, claro. É uma perda de antigos hábitos, de velhas implicâncias reconfortantes e de padrões conhecidos. É claro que tudo isso requer prática e esforço. Não é um ensinamento que você possa escutar uma vez e esperar dominar imediatamente. É uma vigilância constante, e eu quero isso. Preciso disso para ficar forte. Devo farmi le ossa, é o que dizem em italiano. “Preciso fazer meus ossos.”
Assim, comecei a me forçar a prestar atenção em meus pensamentos o dia inteiro, e a monitorá-los. Repito essa decisão cerca de setecentas vezes por dia: “Não vou mais abrigar pensamentos que não forem saudáveis.”  Sempre que um pensamento desprezível surge, repito a decisão. Não vou mais abrigar pensamentos que não forem saudáveis. Na primeira vez em que me ouvi dizer isso, meu ouvido interior se espantou com a palavra “abrigar” e com seu substantivo correspondente, “abrigo”. Um abrigo, é claro, é um local de refúgio, um porto seguro. Visualizei o porto seguro de minha mente – um pouco surrado, talvez, um pouco maltratado pelo tempo, mas bem situado e com boa profundidade. O porto seguro da minha mente é uma baía aberta, o único acesso à ilha do meu Eu (uma ilha jovem e vulcânica, sim, mas fértil e promissora). Essa ilha já passou por algumas guerras, é verdade, mas agora está comprometida com a paz, sob a batuta de um novo líder (eu) que instaurou novas políticas para proteger o lugar. E agora – que a boa-nova seja espalhada pelos sete mares – há nos autos leis muito, muito mais rígidas quanto a quem pode adentrar esse porto seguro.
Você não pode mais vir aqui com seus pensamentos duros e abusivos, com seus navios de pensamentos assolados pela peste, com seus navios negreiros de pensamentos, com seus navios de guerra de pensamentos – todos eles serão rechaçados. Da mesma forma, quaisquer pensamentos cheios de exilados zangados ou famintos, de descontentes e de panfleteiros, de amotinados e de assassinos violentos, de prostitutas desesperadas, de cafetões e de passageiros clandestinos – vocês também não podem mais vir aqui. Pensamentos canibais, por motivos óbvios, não serão mais recebidos. Até mesmo os missionários serão cuidadosamente revistados para avaliar sua sinceridade. Este é um porto pacífico, entrada para uma ilha bonita e orgulhosa que está apenas começando a cultivar a tranqüilidade. Se vocês respeitarem essas novas leis, meus caros pensamentos, então serão bem-vindos na minha mente – senão, eu os devolverei novamente ao mar de onde vieram.
Essa é a minha missão, e ela nunca vai terminar


Capítulo 58 do Livro Comer Rezar Amar da autora Elizabeth Gilbert